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sexta-feira, 12 de junho de 2020

Paz e Guerra

Reprodução de painel de Cândido Portinari




(…) Sem ouvir mais, Rostov esporeou o seu cavalo e pôs-se à frente do esquadrão. Não teve tempo de dar qualquer voz de comando; todos os seus homens, impelidos pelo mesmo sentimento, se precipitaram atrás dele. Nem ele próprio sabia como e porque agira daquela maneira. Procedera como se estivesse numa caçada, sem pensar, nem reflectir. Ali muito perto via os dragões que galopavam. Tinha a convicção íntima de que não resistiriam. Sabia que, se perdesse a oportunidade, aquele minuto não voltaria. O assobio das balas excitava-o tanto, tamanha era a

impaciência do seu cavalo, que não pudera resistir. No momento em que esporeava a montada, soltando o grito de comando, sentiu atrás de si todo o esquadrão que se agitava, e despediu a trote largo, pela encosta abaixo, direito aos dragões (...)”


Trecho do romance “Guerra e Paz”, de Liev Tolstói (1828 - 1910)

O que pode se esconder atrás desse discurso que vemos agora no Brasil cogitando o início de uma “guerra civil” no país por conta das rusgas ideológicas alimentadas pelas hordas neoprotofascistas, que, de uma hora para outra, se evacuaram de seus armários fétidos e obscuros para aterrorizar a vida nacional?



A princípio, devemos lembrar que essa proposta está na gênese discursiva do segmento paramilitar que sustenta o novo esquema de poder no Brasil. Composto essencialmente de elementos vinculados às forças militares e de segurança, os enunciadores do discurso pró-guerra veem, paulatinamente, disseminando elementos narrativos da sanha bélica em outros setores sociais, periféricos aos núcleos legitimamente compostos pelos “milicos”.


Familiares até o último grau e eternas pensionistas. Operadores fascistas do Judiciário. Guardas municipais e do trânsito. Escoteiros e até vigias de rua formariam a base primária receptora e difusora do discurso-guerra. Evidentemente, toda a cadeia “produtiva” armamentista e de segurança é atraída e afetada pelas propostas dos neoprotofascistas “tupiniquins”. Lembrando que eles detestam ser vinculados à cultura indígena brasileira e, a maioria, se considera pertencente a alguma linha quase-pura da humanidade.



Sun Tzu


(…) Li Mu, general de Chao, soltou gado acompanhado por seus pastores. E, logo que os Hsiung-nu avançaram um pouco, o general simulou uma retirada, deixando atrás de si, alguns milhares de homens, como se os abandonando. Quando essas providências chegaram ao conhecimento do sultão, este mostrou-se radiante e, à frente de uma enorme força, marchou para o local. Li Mu, que dispusera a maioria das suas tropas, à direita e à esquerda, num movimento de tenaz esmagou os hunos, matando mais de cem mil dos seus cavaleiros (…)”.


Trecho de “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu (Traduzido do chinês para francês pelo Padre Amiot em 1772)


A ascensão desse tipo de pensamento no Brasil, cresceu usando a “simulação do guerreiro” com base nas táticas de guerra descritas pelo lendário Sun Tzu. Essas hordas passaram décadas fingindo serem incapazes e inativas. Simulavam uma certa distância “ética” das coisas da Política, mas, na prática, estiveram sempre incrustadas em todas as artimanhas do mainstream.


Elas pregam uma “nova Ordem” e uma “nova Política” promovendo o caos social, a desordem e a sensação de ineficácia das instituições estabelecidas. Os que pregam guerra civil no Brasil atual têm interesses indizíveis num cenário assim. São indivíduos das forças militares cujas vidas foram construídas sobre a utopia de agirem em situações-limite, típicas das batalhas.


Gente que passou dois terços de suas vidas treinando para confrontos bélicos que jamais existirão num país pacifista como o Brasil. Afora os agentes de forças policiais que levam suas expertises para atacar “inimigos” nas comunidades dominados pelo narcotráfico. Como se a “guerra às drogas” fosse se espalhar por toda a vida pública nacional.


Protofascistas que, não tendo mais nada a fazer, vislumbram um dia poder mostra seus dotes de “Rambo” contra os próprios compatriotas brasileiros. Atacar a população civil, que não teria chance nenhuma de reagir contra uma ofensiva militaresca. Provocando massacres covardes, como se viu em lugares sórdidos, como os conflitos mundiais recentes patrocinados pelo Estado Islâmico. A crise da “Primavera Árabe” ou as guerras no Iraque e no Afeganistão.


Mas, fomentar guera civil no Brasil é o mesmo que incentivar os indianos a passarem a comer churrasco de vaca. Ou que o cidadão estadunidense se converta ao veganismo radical. Simplesmente não cola! A índole brasileira não comporta o espírito bélico, fascista. Nossa guerra aqui é outra. Mesmo considerando o número assustador de assassinatos violento no país.


Na década de 30, do século passado, um movimento protofascista chamado de “Ação Integralista Brasileira”, usava livros e periódicos para divulgar suas ideias. Atualmente, menos afeitos aos livros e jornais, os idealistas do neofascismo made in Brazil, propagandeiam suas campanhas ideológicas através das redes sociais na internet. Comparados aos integralistas, os protomilicos de agora disparam sua propaganda com uma espécie de “bazuca digital”.


Fascismo pós-caboclo


Há alguns meses eu já havia escrito em A União sobre essa nova cara do fascismo no Brasil. De modo muito intuitivo eu dizia que estávamos ingressando num período onde sairia do armário uma espécie de “fascismo caboclo”.


Naquele momento, a gente estava entrando em contato com um novo conceito epistemológico da “ultrapolítica”. Slavoj Žižek avisa que isso ocorre a partir do momento em que a percepção política da sociedade se descoloca da realidade concreta.


Ele sugere que os principais sintomas de uma ultrapolítica contemporânea surgem, por exemplo, quando os fundamentalismos tentam se impor no ambiente da opinião pública para justificar e ou naturalizar posições ideológicas que foram demarcadas em algum momento histórico, como, por exemplo, a essencialização do fascismo. A ultrapolítica foi ganhando corpo no Brasil pós-Temer reforçando aforismos do tipo: “bandido bom, é bandido morto”.


Aquele episódio em Sobral (CE), envolvendo o senador Cid Gomes e policiais militares “em greve”, poderia ter sido só mais uma marmota da esdruxula cena política brasileira, mas o que ocorreu na cidade natal de Belchior, no extremo norte cearense, é um daqueles fatos que entram definitivamente para a historiografia brasileira moderna. De maneira triste e assustadora.


A sequência de fatos que culminaram com a tentativa de assassinato do ex-governador é decorrência inevitável de uma conjuntura esquizofrênica, alimentada por uma cultura do ódio que se proliferou como peste no Brasil nos últimos anos. Resultado de um fascismo caboclo despertado por segmentos minoritários que usam o discurso da violência como suporte para interesses da indústria da morte.




Negócio mortal


Segundo a Agência Câmara de Notícias, representantes da indústria nacional de defesa têm frequentado com bastante interesse as reuniões da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, para reclamar da discrepância tributária que prejudica o setor no Brasil, beneficiando diretamente empresas estrangeiras fabricantes de armas.


Dados de uma associação que agrega 200 empresas de defesa e segurança, informam que o setor emprega cerca de 60 mil pessoas diretamente e 240 mil trabalhadores de forma indireta, sendo responsável por 4 bilhões de dólares em exportações (e 2,4 bilhões em importação) e responde por 3,7% do PIB nacional.


A mesma agência noticiou que o presidente da Taurus do Brasil tem reclamado da burocracia brasileira. A empresa aguardava, ano passado, a autorização para testes de 177 protótipos para certificação, e 68 avaliações aguardando parecer das autoridades brasileiras que monitoram o setor.


Uma pesquisa feita por uma instituto da Suíça coloca o Brasil como um dos maiores fabricantes de armas de pequeno porte do mundo, ao lado de países como China, Rússia, Alemanha, Bélgica e Estados Unidos. Levantamento junto às secretarias de Segurança nos estados mostra que, quase oito em cada dez armas apreendidas de criminosos no Brasil nos últimos anos são de fabricação nacional.


A Redação brasileira de El País divulgou em 2017 que a ONG Small Arms Survey, aponta o Brasil como um dos países menos transparentes com relação à exportação das, assim chamadas, “armas leves”, só perdendo para Argentina, Paquistão, Índia, México e China.


A reportagem alerta que os armamentos brasileiros podem estar abastecendo o mercado paralelo em países que violam direitos humanos, ou armando até grupos terroristas e criminosos.


Investir num discurso público e aberto da possibilidade de uma “guerra civil” neste país, portanto, pode ser uma aposta não apenas de fanáticos, loucos para apertar o gatilho num exercício prático nas ruas brasileiras. Uma sana cuja catarse seria vomitar todo o ódio, que amenizam nos clubes de tiro, num bangue-bangue a céu aberto.


A quem interessaria, de verdade, uma sandice dessas?


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